Um manual de boas práticas para a IA não turvar a realidade em documentários

Organização composta por centenas de produtores de documentários publicou um documento em que enumera os principais pontos a seguir para garantir um uso ético de inteligência artificial generativa.

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A Archival Producers Alliance defende o "valor insubstituível" dos "registos audiovisuais autênticos" e diz que deve haver transparência para salvaguardar a confiança do público Paulo Pimenta
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A Archival Producers Alliance (APA), organização composta por mais de 300 produtores de documentários, sediados nos Estados Unidos e não só, apresentou na 20.ª edição do Festival Internacional de Camden, que decorre nessa cidade do estado norte-americano do Maine desde o dia 12 até domingo, um manual de boas práticas no que toca à utilização da inteligência artificial generativa no processo de criação de documentários. Este documento, que pode ser lido online, surge depois de o debate sobre a entrada da inteligência artificial (IA) na indústria cinematográfica ter atingido proporções inéditas em Hollywood, onde as greves de vários meses, tanto de actores como de argumentistas, suscitaram reflexões sobre qual o tipo de quadro legal que deve ser implementado para evitar um uso da tecnologia que ultrapasse barreiras éticas ou morais.

A APA já havia, no final do ano passado, publicado na revista The Hollywood Reporter uma carta aberta em que elencava sinais perigosos que já começava a ver em documentários recentes — designadamente uma “falta de transparência”, observada por exemplo quando “vozes históricas são geradas por IA, levando os espectadores a achar que estão a ouvir algo autêntico quando não estão” — e pedia à indústria regulamentação. “Acreditamos que temos uma responsabilidade de usar a IA generativa em concordância com os valores jornalísticos com os quais há muito estamos alinhados. Acima de tudo o resto está a promessa implícita, feita ao público, de que aquilo que lhe é apresentado como sendo material autêntico é, efectivamente, autêntico. Isso está a ser distorcido pela IA generativa — e acreditamos que está na altura de a indústria estabelecer normas em resposta à nova tecnologia, para que a confiança que os espectadores têm em nós não se quebre”, escrevia então a associação, cujos membros incluem vencedores de Emmys e Óscares.

Agora, estes enumeram os quatro princípios que, no seu entender, devem nortear a produção de qualquer documentário. A Archival Producers Alliance começa por sublinhar o “valor insubstituível das fontes primárias” de material de arquivo. “Registos audiovisuais autênticos são criados por humanos, num momento específico, contemporâneo dos eventos retratados. Quando estes registos são usados em documentários, permitem que os espectadores mergulhem num momento no tempo e tenham a oportunidade de experienciar aquilo que alguém daquela era gravou daquele momento, a partir da sua perspectiva e com um propósito particular”, pode ler-se no manual de boas práticas.

Material gerado por IA que seja praticamente “indistinguível” das “fontes primárias” corre o risco de se disseminar — seja “na Internet, em materiais educativos ou em outros filmes” — e de “turvar para sempre o registo histórico”, acrescenta-se. Os autores do documento lembram ainda que a inteligência artificial pode “reforçar estereótipos”, ou então, num esforço para os combater, “corrigir em demasia” uma qualquer assimetria social ou situação de discriminação, representando momentos históricos sem o devido rigor.

No segundo ponto do manual, a APA frisa a importância da transparência, essencial para salvaguardar a “confiança dos espectadores”. Já no terceiro, a associação encoraja os criadores de documentários a destinarem quantidades “adequadas” de tempo e orçamento a uma revisão minuciosa, junto de conselheiros legais, de todas as considerações relevantes em matéria de legislação, sob pena de um uso imprudente de IA generativa resultar em riscos para a produção.

Por último, a Archival Producers Alliance reflecte sobre as considerações éticas a ter em conta quando se usa IA para “alterar ou manipular a cara, o corpo ou a voz de uma pessoa real”. Uma pesquisa minuciosa para encontrar material original, defendem os membros da associação, deve sempre ser preferida à opção mais barata e rápida que é a criação de uma imagem com recurso a IA generativa. Os autores do manual destacam ainda a necessidade de obter o devido consentimento dos indivíduos cuja imagem ou voz esteja, por algum motivo, a ser simulada — e de assumir “diligências adicionais” quando o sujeito em questão é incapaz de dar esse consentimento.

Várias organizações do sector surgem na última página do documento como entidades apoiantes do mesmo. “Mais de 50” autores de documentários, incluindo Michael Moore, Ken Burns e Rory Kennedy, juntam-se ao coro que defende o valor deste manual, segundo escreve o jornal britânico The Guardian.

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